quarta-feira, 17 de setembro de 2014

TOP #10 - Erros conceituais no filme Lucy!

#SPOILER ALERT#

Este post é uma crítica científica ao filme “Lucy”. Portanto, se você pretende assistí-lo e não quiser spoilers, you shall not pass, dude.


Sinopse. “Quando a inocente jovem Lucy (Scarlett Johanson) aceita transportar drogas dentro do seu estômago, ela não conhece muito bem os riscos que corre. Por acaso, ela acaba absorvendo as drogas, e um efeito inesperado acontece: Lucy ganha poderes sobre-humanos, incluindo a telecinesia, a ausência de dor e a capacidade de adquirir conhecimento instantaneamente”.




A sinopse não parece tão ruim, hum? Pena que ela pouco traduz o que realmente são os 91 minutos de Lucy. Pela primeira vez em algum tempo sequer soubemos por onde começar uma crítica. Sério. Lucy é dos filmes cientificamente mais desinformadores já filmados na história deste pequeno planeta azul (e olha que não nos faltam digníssimos exemplos, nesse sentido).


Atraídos pela chamada inicial, a qual dizia que o ser humano só usa 10% de sua capacidade cerebral (que por si só já renderia uma boa crítica), fomos “premiados” com pelo menos mais uma dezena de erros científicos bizarros dentro do filme. Boa, Universal, muito boa! Só que não. E ainda "jogaram fora" um elenco excelente. Scarlett Johnason, Morgan Freeman... Mas enfim! Para que você, leitor, não faça como parte da população brasileira e APLAUDA este monte de pseudo-ciência, decidimos fazer uma lista dos principais erros contidos em Lucy.


Brace yourselves, guys.



TOP 10 erros conceituais em Lucy


1 – Percentual de utilização do cérebro em humanos e golfinhos (KN)


Nós usamos só 10% do cérebro. Pra começar, isso seria um grande desperdício. É pouco provável que um órgão com o custo-benefício tão baixo tenha evoluído. De qualquer forma, não temos como saber quanto do cérebro usamos realmente, mas sem dúvidas é mais de 10%. Como sabemos isso? Se 90% não servisse pra nada, poderíamos remover 90% do cérebro sem muitos danos. Não é verdade, pense nas consequências de um trauma qualquer no cérebro. Ou lobotomia. Outra razão: sabemos que neurônios e sinapses que não são usadas degeneram - se 90% não fossem usados, não seriam mantidos.


Isso não quer dizer, contudo, que usemos 100% o tempo todo (agora mesmo, enquanto escrevo, estou com sono, está difícil de me concentrar). Com certeza dá para melhorar o nosso estado de alerta, atenção, cognição, memória, etc. Mas é uma questão de “usar melhor”, e não de “usar o que não está sendo usado”.


Há a sugestão de que o mito dos 10% venha da ideia de que apenas 10% das células nervosas sejam neurônios (as unidades funcionais do cérebro, que processam informação) e os outros 90% sejam células de suporte, as células da glia. Mas nem isso é verdade (para os nerds mais céticos, segue o link http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2776484/). Outra possibilidade é que isso tenha surgido em livros de auto-ajuda no início do século passado e popularizado por Dale Carnegie (http://www.amazon.com.br/s?_encoding=UTF8&field-author=Dale%20Carnegie&search-alias=digital-text).


Já sobre golfinhos usarem 20% do cérebro, aparentemente, porque eles fazem uso de ecolocação... Verdade, eles usam a ecolocação. E, realmente, funciona como um sonar. E, realmente, a ecolocação é uma habilidade custosa em termos de processamento cerebral. Mas morcegos também fazem uso de ecolocação. Eles também usam o dobro do cérebro, se comparados com humanos, então? E isso se esse lance de capacidade cerebral procedesse, o que não é o caso.


Mas, especulações de percentual à parte, golfinhos parecem ser bastante inteligentes (http://news.discovery.com/animals/dolphin-intelligence-explained.htm) e em alguns países possuem até status de “pessoa não-humana”. O mais curioso no filme é que isso me pareceu jogado lá sem razão ou conexão com a história.

Segundo Lucy, ele tem capacidade de acessar o dobro da nossa capacidade cerebral.



2 – O homem no topo da cadeia evolutiva (RK).


Esse é um clássico dos erros científicos que esse filme apenas reproduz. Infelizmente, quem dá voz é o Morgan Freeman, um dos homens mais carismáticos da face da Terra. Evolução nunca foi, nem nunca vai ser, sinônimo de progresso. Evolução é igual a TEMPO. E pra você que raciocina um pouquinho, sim, tecnicamente quaisquer bactérias são mais evoluídas que a espécie humana, simplesmente porque surgiram antes de nós, numa escala temporal. Na verdade, grande parte dos seres vivos o é, considerando que o Homo sapiens sapiens é uma espécie jovem. Tapa na cara da sociedade, hein?


Mas voltando ao filme: pra fechar com chave de ouro, o filme ainda coloca evolução como sinônimo de maior uso do cérebro. EXPLIQUE OS GOLFINHOS AGORA, MORGAN FREEMAN. Ele explica. Golfinhos usam 20%, mas não são  mais evoluídos que nós porque esses 10% a mais são pra ecolocação. Vlw flws. De foder o cu do palhaço, só falando assim.

3 – Desligamento de algumas regiões cerebrais (KN).


Porque ela fica sem sentimentos? Ela tem acesso a uma capacidade cerebral aumentada. Mas no filme parece que isso vem às custas de perder acesso à capacidade de sentir. Ela perde expressões faciais, variação vocal ao longo do filme (ou foi a atuação da Scarlett Johanson que deixou a desejar?). Só não perde a fome.


Aliás, esse é um ponto legal. Mais neurônios realmente exigiriam mais energia (muito mais, o cérebro é bem “caro”, metabolicamente). Mas ela meio que para de comer depois. De novo, não faz muito sentido. Vai contra a premissa (já questionável) do filme.


4 – Origem da vida há 1 bilhão de anos (LM).


Essa nem tem muito o que discutir. A vida na Terra data de aproximadamente 3.5 bilhões de anos pelo registro fóssil, fim. Ah, mas talvez a referência fosse à vida eucariótica... Também não! Hominídeos? Primatas? Mamíferos?! Nops. Nada bate. Sinceramente, não sei de onde diabos eles tiraram isso.




5 -  O cérebro humano possui 100 bilhões de neurônios (RK).


Esse erro tem um apelo emocional para mim. Temos 86 bilhões de neurônios. Essa contagem foi feita no meu antigo laboratório e no atual grupo de pesquisa do meu amigo colunista deste blog, Kleber Neves. O método utilizado é extremamente confiável, deixo aqui um link (http://www.suzanaherculanohouzel.com/journal/2009/2/12/somos-apenas-grandes-primatas-e-agora.html) para um post da pesquisadora chefe deste laboratório, minha orientadora durante o mestrado, Suzana Herculano-Houzel, sobre o tema.


6 – Imortalidade X Reprodução (RK).


Estou até agora tentando entender o que o Morgan Freeman quis dizer com isso de imortalidade e reprodução. Primeiro pensei em esporos de bactérias (pra quem não sabe, alguns tipos de bactérias desenvolvem formas de resistência em condições adversas, nas quais elas assumem metabolismo mínimo). E seria até razoável, isso realmente acontece alguns seres unicelulares. O problema é que ele reverte isso para células animais e finalmente para humanas. Pior: quando Lucy se lembra desse detalhe, ela simplesmente começa a se desfazer em virtude do ambiente desfavorável. Isso é imortalidade? Da onde esse roteirista tira essas coisas?


7 – Controle material e energético (RK).


Quer dizer que quando eu acesso as "áreas perdidas" do meu cérebro eu ganho SUPERPODERES? Sério, macho, SUPERPODERES? Capacidade de resolver equações é bobeira, compreensão espacial, musical...  Foda-se. Maneiro é CONTROLAR MENTES, corpos e energia. "AH, vá a merda", diria o Alborghetti. Não tem o que comentar aqui. Isso não é erro científico, é uma pachorra sem tamanho.




8 – Células em divisão (LM).


O início do filme passa uma ideia de início da vida humana, certo? Pois é. Podemos ver células eucarióticas (que possuem membrana delimitando seus núcleos) se dividindo. Poréééém... Um ser eucariótico no início de seu desenvolvimento possui células que, ao realizarem sua divisão, permanecem aderidas umas às outras – e não boiando aleatoriamente. Essa adesão é extremamente importante para o desenvolvimento correto de órgãos e tecidos.




Mas aí você pode argumentar que essa cena poderia se referir a início da vida na Terra. Sim. Mas nesse caso, células eucarióticas não fazem sentido algum.


9 – Habilidades aleatórias (KN).


Lucy traduz chinês sem nunca ter estudado. Como assim? Ela já sabia chinês, mas estava nos 90% que ela não usava? Todo mundo tem idiomas latentes no cérebro? Mesmo se ela ganhasse capacidade cerebral aumentada, suponho que ela teria que sentar pra estudar coisas novas. Por outro lado, ela aprende sobre o funcionamento do rim de alguém tocando na pessoa ... chinês nem parece tão complicado perto disso.


10 – O tempo é medido em unidades (RK).


Na última "epifania" do filme, Lucy revela ao mundo que o segredo de todas as coisas é o tempo. Indo de encontro à medição humana - completamente egocêntrica - por unidades. Claro, porque o tempo não é medido em unidades humanas. Oh wait. Ah, nessa até eu me confundi, haha.


Surpreso com tantos erros? Pois é. E direi APENAS que esses são os principais. Poderíamos facilmente fazer um TOP 15 ou 20 aqui. Inacreditável, não é?


Mais que isso - talvez inaceitável, diriam os mais radicais. Afinal, o que está em jogo aqui é a formação de opinião do público leigo acerca desses assuntos. E esse é um ponto perigoso em Lucy. Porque ao mesmo tempo em que o filme é péssimo como ferramenta de divulgação científica, ele é ótimo em envolver o público e fazê-lo acreditar piamente em cada palavra que está sendo dita pelo carismático Morgan Freeman. Lógico que não estou dizendo aqui que as pessoas vão sair da sala do cinema achando que podem ganhar poderes sobre-humanos. Esses limites bizarros da ficção científicas estão bem definidos na cabeça de qualquer pessoa. Mas o público pode - e provavelmente vai - acreditar que os dados da palestra do Morgan Freeman – os quais, aliás, dão todo embasamento para os acontecimentos do filme – possuem alguma verdade científica. E, reparem só, é justamente sobre eles que recaem nossas críticas.


O ponto todo é: ótimo que o roteiro parta de coisas concretas, de verdades científicas, para criar seu cenário de ficção. Mas, por favor, vamos pelo menos apresentar esse conhecimento científico de maneira correta. Ou então torne as premissas do filme também ficção – nada de errado com isso também, desde que se deixe isso claro para o público. O que não se pode é ignorar o papel de um filme (ainda mais uma super produção) como ferramenta de divulgação científica e empurrar pseudo-ciência pela goela do espectador.


Durante sua palestra, Morgan Freeman diz “Now we’re going into science fiction”. De fato. Isso devia estar lá o tempo inteiro, como aviso para o espectador incauto. O tom do filme faz parecer que existe boa ciência por trás do que ele propõe. Mas não, não mesmo. Como professor e neurocientista o Morgan Freeman dá um ótimo presidente dos Estados Unidos em Impacto Profundo.

Apenas 10%, dude.

Legenda: LM - Trecho composto por Larissa Mattos. Larissa Mattos é uma biomédica em formação pela Universidade do Brasil, tendo atuado no Laboratório de Neuroanatomia Comparada chefiado pela professora Suzana Herculano-Houzel como bolsista do programa Jovens Talentos da Ciência e no Museu Espaço Ciência Viva, no Rio de Janeiro, como divulgadora científica. Atualmente se encontra na University of Reading, no Reino Unido, como bolsista do programa Ciência Sem Fronteiras. KN - Trecho redigido por Kleber Neves. Kleber Neves é um Biomédico formado pela Universidade do Brasil atualmente cursando seu Ph.D no Instituto de Ciências Biomédicas da mesma universidade. Ele atua no Laboratório de Neuroanatomia Comparada chefiado pela professora Suzana Herculano-Houzel e está interessado em evolução do cérebro e cognição em pássaros. RK - Colaboração de Rodrigo Kazu. Rodrigo Kazu é originalmente um biólogo formado pela Universidade do Brasil que cursou seu mestrado em Neurociências no Instituto de Ciências Biomédicas da mesma universidade, compondo sua tese sobre cérebros da ordem animal Artiodactyla no Laboratório de Neuroanatomia Comparada, chefiado pela professora Suzana Herculano-Houzel. Atualmente, em seu Ph.D em Cibernética, está sediado na University of Reading trabalhando no Brain Embodimento Laboratory inserido projeto Animat. Tal iniciativa visa o uso de células neuronais cultivadas para o controle de um robô movel, compondo uma plataforma para o estudo de diversas questões no âmbito das neurociências.

7 comentários:

  1. Mas isso é óbvio, não se pode fazer um filme de ficção sem ficção!

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  2. O filme é uma porcaria mesmo, em todos os sentidos. Parabéns!

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  3. Perae o enredo deve alertar que é um filme e não uma palestra real, que é ficção inverdades e não aulas de como somos ilustres? É por isso que a arte é a mãe da ciência... E cada um sendo o que é nos lugares que estão pouparia tempo.

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  4. Perae o enredo deve alertar que é um filme e não uma palestra real, que é ficção inverdades e não aulas de como somos ilustres? É por isso que a arte é a mãe da ciência... E cada um sendo o que é nos lugares que estão pouparia tempo.

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  5. Se me responderem categoricamente "o que é o tempo? e fisicamente o que é espaço, talvez não me faça mais sentido mesmo assistir arte contemporânea, e sim tentar descobrir o que esta mais ao interior de o horizonte de eventos de um buraco negro, ou tente nos meus anos que restam revelar um único anti-elemento que seja.

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  6. O gênero do filme é ficção, logo não tem oque corrigir e sobre ela não ter estudado chinês, ela poderia ter estudado na infância ou você não prestou atenção no filme, tentar corrigir um filme de ficção é a mesma coisa de unir Patrulha salvadora(ainda n acredito q pessoas gostam disso) e Os vingadores, em fim belo post, porquê existe pessoas que são fácil de influenciar e depois de assistir ficar falando merda que a gente só usa 10% do cérebro etc... Logo então esse post não é fútil, eu gostei do filme Lucy, não me deu vontade de ficar corrigindo no cinema pois eu sei que é FICÇÃO, mas só acho que deveriam aproveitar mais a Scarlett e o Morgan, o filme é bom mas usar 2 atores caros para ele? Não sei não hehe

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  7. talvez devesse , sim, deixar mais claro que quase nada nele é plausível, que é "tipo um filme de super-herói".

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